Primeira noite
Três horas de estrada pra chegar nesse esgoto a céu aberto que insistem em chamar de praia. Eu nunca vou esquecer do dia que nadei do lado de um pedaço de bosta. Literalmente, uma unidade de fezes humanas. Meus pais falaram a semana inteira sobre isso, "um mês na praia!", nessa praia, onde parece que os velhos vem pra morrer e tudo cheira a mofo. Um mês na prisão de mofo. Que sorte a minha ter uma tia-avó morta sem bom gosto pra localização. Mas é isso, eu tô na praia.
Pensando melhor já tô com saudade das três horas de estrada, acho que foi meu último momento de paz desse ano. Eu sempre gostei da serra do mar... A névoa, os avisos de perigo iminente, o ouvido entupido, os túneis enormes, as curvas perigosas e a expectativa. Engraçado como o caminho muitas vezes é melhor do que o destino. Meus pais pareceram discutir alguma coisa, fiz meu melhor pra deixar a música o mais alto possível, quanto menos eu saber melhor.
O prédio é a mesma coisa desde que me lembro pior gente, passo os verões aqui desde neném, mas já fazia cinco anos desde a última vez. Desde que a tal tia-avó faleceu no asilo a família toda brigou, se ajudou, infernizou, reformou e finalmente decidiram manter o imóvel. cinco longos anos de briga e muito dinheiro envolvido, acho que no final isso que significa criar uma família, acumular suas riquezas. Mas o prédio ainda estava lá igualzinho, o mesmo azulejo branco sem graça, a mesma faixada de prédio do litoral, os mesmo restos de areia na entrada. Vi meus amigos de infância enquanto ajudava meus pais a descarregar o carro, eles estavam ouvindo música e conversando no estacionamento. Eles pareceram felizes em me ver, não sei. Eu não sou a mesma pessoa que eles lembram de cinco verões atrás, me lembro da pequena Papillon de 12 anos como se fosse um sonho distante. Vocês também sentem que suas lembranças às vezes parecem pertencer a outra pessoa?
Resolvi dar uma volta de bicicleta pela orla, fui até meu lugar favorito, a estátua de Iemanjá. eu gostava de observar as pessoas levando rosas e acendendo velas. Gostava de observar as mães e pais de santo que ficam na região vendendo seus artigos religiosos e conversando com os visitantes. Um deles me abordou, tinha a voz afetada e falava sobre como não existe milagre, você trabalha e colhe o fruto do seu trabalho, ele pegou minha mão e sorriu pra mim. Foi o sorriso mais triste que já recebi na minha vida. ele me deu uma vela e uma rosa, disse que eu precisava me libertar. Não sei se acredito nisso tudo, mas acendi a vela e coloquei a rosa na fonte, aos pés da rainha do mar, da grande mãe. Não sei o que pensei, nem o que pedi, foi um desses momentos que minha cabeça esvaziou. Acho que não acredito em deuses ou deusas, o mundo é muito quebrado pra existir qualquer tipo de divindade. Se existe alguma coisa lá fora porque eles não me protegeram?
Acho que preciso dormir, passei a noite em claro andando pela orla, quando voltei pro prédio meus antigos amigos estavam saindo para uma festa e decidi ir com eles. Alguma coisa naquela estátua me deixou deslocada, como se eu nunca fosse pertencer a lugar nenhum. Mas agora estou cansada demais pra escrever. Preciso dormir. Mais tarde eu volto e conto pra vocês as loucuras da minha primeira noite na praia. Já tenho tanta coisa pra contar, eu disse que o caminho foi meu último momento de paz... A calmaria antes da tempestade. Felizmente a internet funciona bem aqui, uma das muitas mudanças feitas pela família pra tornar o apartamento habitável, então vocês não vão ficar sem mim, eu nunca abandonaria vocês, né? Posso fazer um tour de reconhecimento da quitinete depois, quando as coisas estiverem mais tranquilas por aqui, então fiquem de olho que quando vocês menos esperarem posso estar online ;)
Boa noite, amores. Não vivo sem vocês.
Pra sempre sua,
XxPsyche
por XxPsYcHe
15/12/2007
06:49