<< anterior próximo >>
.
Acordei assustada, não sabia que horas eram mas estava clareando. Antes mesmo de tirar o lençol e olhar pra baixo eu já sabia o que tinha acontecido, eu podia sentir alguma coisa errada dentro de mim, e a poça quente e viscosa que se acumulava no meu quadril era mais um prova irrefutável. Eu nunca tinha sangrado tanto na minha vida. Foi um descarrego dentro de mim, me senti triturada e lavada por dentro. Naquele momento eu não me senti real, não me senti humana, pra falar a verdade eu não consegui sentir nada. Nos breves segundos entre acordar e entender a minha realidade eu me senti num vácuo, eu não senti nada. Tentei me agarrar àquele momento mas inevitavelmente eu acordei, eu entendi.
Decidi ir pro hospital porque me parecia ser a resposta adequada. algumas horas na sala de espera e um médico sonolento no plantão depois e tive a resposta que já sabia. Ele tinha morrido, aborto espontâneo. Enquanto voltava pra casa a cidade já estava desperta, o caos do trânsito, as buzinas, as pessoas indo trabalhar e eu no meio disso tudo vazia. Me senti vazia. Eu disse que não estava pronta, eu excomunguei minha fé, eu pedi por uma saída. Vazia e culpada.
Meu apartamento pareceu maior quando cheguei, e ao mesmo tempo insuportavelmente claustrofóbico. As paredes me engoliam porque elas sabiam dos meus desejos obscuros, elas sabiam das minhas lágrimas derramadas na madrugada, elas sabiam que eu não queria ter que lidar com essa vida sozinha. eu não podia mais ficar lá. Enchi a maior mala de viagem que encontrei com o máximo de meus pertences e saí. Sem olhar pra trás e sem pensar duas vezes, eu fugi sem saber pra onde estava indo, quando percebi estava na rodoviária em frente ao guichê de bilhetes.
Lidar com o tempo nunca foi minha prioridade, acho que parte de mim sempre tentou esconder o fato de que a nossa percepção é linear e ininterrupta. A vida atropela e quando você vê está aqui. No mesmo lugar que tudo começou, no meu caso na mesma pequena quitinete da minha infância e adolescência. Não consigo lembrar a última vez que estivera aqui, talvez 15 anos atrás? 17? Alguns anos parece que somem, outros duplicam e se misturam, se fundem e se confundem comigo, com sonhos, com os outros, mas enfim. O fato é que me senti vazia e a deriva, e por isso sabia que precisa ir pro mar. E ai voltei. Sempre indo e vindo, espiralando para todas as dimensões da existência mas seguindo esse fio da meada. Me perdi de novo.
Acho que eu precisava estar aqui.
05/04/26
M